A presidência brasileira do G20 tem como trunfos a habilidade de construir pontes entre países ricos e pobres, entre Norte e Sul Global. Aposta ainda em temas que o país tem credenciais e experiência, caso do combate à fome e às mudanças climáticas. Mas a capacidade brasileira de influenciar a formação de consensos entre as maiores economias do mundo tem como obstáculo um contexto de crescentes conflitos globais, que colocam os países em campos opostos e dificultam a construção de diálogos necessários para avançar em agendas de desenvolvimento.
O cenário, que combina oportunidades e desafios para o país na presidência rotativa do G20, foi evidenciado por autoridades e especialistas nesta quarta-feira (20), no seminário “Kick-off G20 no Brasil”, a primeira rodada de debates do projeto “G20 no Brasil”, parceria entre Valor, jornal “O Globo” e rádio CBN.
O Brasil assumiu a presidência rotativa do G20, pela primeira vez, em 1º de dezembro do ano passado e vai liderar o grupo até 18 e 19 de novembro, quando se realiza, no Rio, a cúpula de chefes de Estado. Ao término do encontro, o país vai passar a presidência para a África do Sul. O G20 reúne 19 grandes economias do mundo, além de União Europeia e União Africana. O grupo responde por cerca de 85% do PIB e por dois terços da população mundial.
“A importância do G20 é indiscutível. É um foro central para manter a diplomacia e o diálogo mesmo em momentos de crise como o que vivemos hoje”, disse o embaixador Maurício Lyrio, secretário de assuntos econômicos e financeiros do Itamaraty e coordenador da trilha de negociadores do G20. Ele participou de mesa que discutiu a agenda brasileira e a capacidade do país de criar consensos.
Na visão de Lyrio, o grupo de grandes economias se tornou o foro de diálogo mais importante entre as principais potências globais. Esse grupo tem capacidade de reunir representantes do alto escalão de países que estão em lados opostos de conflitos internacionais, caso, por exemplo, de Rússia e Estados Unidos, em relação à guerra da Ucrânia. O diplomata citou dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), segundo os quais foram registrados 123 conflitos em 2023, o que representa um retorno ao contexto da Guerra Fria, nos anos 1990.
Lyrio destacou as prioridades da presidência brasileira do G20: combate à fome e às desigualdades, transição energética e reforma da governança global. Segundo o embaixador, o país buscou olhar para temas convergentes entre a comunidade internacional e também para questões que o Brasil tem credenciais e experiência.
Também no debate, o professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo Oliver Stuenkel reconheceu a habilidade brasileira de criar “pontes” entre países do bloco, mas alertou que o país precisa “tomar cuidado” para que questões políticas não contaminem os debates técnicos. Ele lembrou, por exemplo, que a cúpula anterior de líderes do G20, em Nova Déli, na Índia, em 2023, teve dificuldades de avançar em um comunicado final. O principal desafio do Brasil, acrescentou, será conseguir uma comunicação conjunta “relevante”. Isso em um cenário em que as tensões geopolíticas globais tendem a continuar crescendo.
“Alcançar uma declaração final hoje é muito mais difícil do que há cinco anos. Estamos muito perto de termos o primeiro G20 sem uma declaração final”, disse Stuenkel. Lyrio, que participou do debate via videoconferência, disse ter uma visão mais otimista: “Fazendo mover essa agenda de consensos globais é que temos capacidade de estabelecer maiores e melhores contatos entre líderes internacionais porque isso alivia tensões”.
Ex-embaixador na China e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Marcos Caramuru reconheceu a relevância do G20, mas advertiu: “O G20 é um grande foro de concertação, talvez o mais importante no momento. Mas os espaços internacionais são incrementais. Eles não têm mudanças radicais e operam no passo a passo. E essa expectativa do passo a passo é que temos que combinar com a expectativa das grandes transformações ligadas ao mundo e às sociedades nos dias de hoje”.
O mundo, disse Caramuru, transita de uma realidade unipolar para uma multipolaridade, que se relaciona com a ascensão da Ásia e de outros países emergentes. “É natural que organismos multilaterais tenham dificuldade de incorporar novos valores e passar a uma nova sistemática de decisões e reflexões”, disse. A China e os recursos das instituições internacionais, ponderou, não são suficientes para alcançar as ambições da liderança brasileira. “É preciso trazer o setor privado”, defendeu.
G20 é foro central para manter diálogo no atual momento de crise”
— Maurício Lyrio
Outro ponto de inflexão da agenda brasileira é o financiamento a projetos de infraestrutura e adaptação às mudanças climáticas, sobretudo no Sul Global. A diretora de infraestrutura do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciana Costa, defendeu que é preciso investir globalmente na descarbonização da economia, mas sem que os custos pesem para países do Sul Global e de menor PIB.
Costa afirmou que o Brasil tem a oportunidade de avançar na descarbonização e nas mudanças das matrizes energéticas. Entre as vantagens brasileiras, ela apontou a estabilidade geopolítica e a boa relação com os países do G20, o que facilitaria a atração de investimentos, além da riqueza em biodiversidade e recursos naturais. “No ano passado, o mundo investiu U$ 1,8 trilhão [em transição energética]. Precisa investir três vezes isso.”
A diretora disse ainda que o Brasil tem interesse em realizar uma transição energética rápida, mas enfrenta a resistência de países como Índia e China. Ela afirmou que esses países avançam em direção oposta a do Brasil e têm metas de mais longo prazo do que as estabelecidas no Acordo de Paris. “A transição energética tem um custo, mas o custo para o Brasil é menor”, disse Costa.
Na agenda do combate à fome, tema prioritário do Brasil no G20, Lyrio defendeu que o país tem a experiência de tirar o país do Mapa da Fome da ONU, em 2014. Em 2022, o percentual de brasileiros que não têm certeza de quando vão fazer a próxima refeição voltou a superar a média mundial.
Já a reforma da governança global é uma das pautas caras ao presidente Lula desde o seu primeiro mandato. Uma das bandeiras do petista é a inclusão de novos membros no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Lyrio mencionou que embora a ONU tenha importância central na mediação de conflitos, o organismo não tem sido capaz de chegar a consensos. “É preciso ter instituições fortes para manter a paz no mundo e sabemos que essa missão não tem sido desempenhada a contento, então é preciso reforçar a ONU”, disse.