Bets: ‘Se fossem uma droga, seriam o crack’, compara psicóloga

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Vinte e seis dias. Esse foi o tempo que Fiódor Dostoiévski (1821-1881) levou para concluir as 232 páginas de O Jogador (1866). Viciado em roleta, o autor de Crime e Castigo (1866) e Os Irmãos Karamazov (1880) precisava do dinheiro do adiantamento para pagar dívidas. Por essa razão, escreveu sobre algo que conhecia bem: o jogo patológico. Não por acaso, a história se passa em uma cidade imaginária chamada Roletemburgo.

“Por que o jogo é pior do que qualquer outro meio de ganhar dinheiro? É verdade que, de cem que jogam, só um ganha. Mas, o que é que tenho a ver com isso?”, indaga o autor no livro. Por repetidas vezes, o escritor russo perdeu o que tinha com jogatina. Com credores batendo à sua porta, chegou a fugir com a família para a Suíça.

Dostoiévski é também o nome fictício de um jogador de 49 anos que vive em São Paulo e, desde 2021, frequenta as reuniões dos Jogadores Anônimos. Por WhatsApp, ele conta ao Estadão que, quando tinha 30, sentou numa mesa de pôquer e começou a jogar por dinheiro. Até os 48, jogou de tudo: pôquer, cavalo, bet. Quando descobriu as apostas esportivas online, o que era ruim ficou ainda pior: estourou cartões, pediu empréstimos, contraiu dívidas… Só não se matou porque não teve coragem.

“Para apostar em cavalo, você precisa ir ao jóquei. Para ganhar na roleta, precisa encontrar um cassino. Mas, para jogar na bet, não precisa ir ao estádio. Joga em casa mesmo. É como ter um cassino na palma da mão”, compara o jogador, em recuperação há seis meses.

Apostas online têm tanto potencial de causar dependência quanto álcool, tabaco e cocaína, alertam especialistas Foto: wpadington/Adobe Stock

O fácil acesso às bets impulsionou a busca por tratamento no Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI). A unidade registrou um salto de 175% – de 58 inscritos em 2022 para 160 em 2023. O aumento da procura por jovens adultos (de 18 a 30 anos) foi ainda mais expressivo: 480%. Saltou de 10 para 58. “A procura sempre aumenta quando o acesso às apostas é ampliado e um jogo se torna popular. Foi assim com os bingos, até sua proibição, em 2004. Agora, o fenômeno se repete com as apostas online”, analisa o psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do PRO-AMITI.

“Desde que as apostas online foram legalizadas, em 2019, o perfil do paciente mudou: a média de idade caiu (de 47 anos para 30), o predomínio de homens aumentou e os jogos mais relatados passaram a ser as apostas esportivas e os cassinos online”, descreve o médico.

Fundado em 2004, o PRO-AMITI trata, entre outros transtornos do impulso, compras compulsivas, dependência de comida e impulso sexual excessivo. Estima-se que já tenha atendido mais de 5 mil pacientes.

‘Se a bet fosse uma droga, eu diria que é o crack’

São nove os critérios estabelecidos pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, na sigla em inglês) para um jogador ser classificado como compulsivo ou patológico. Tentar parar e não conseguir, voltar a jogar para recuperar o que perdeu e colocar em risco a família, o trabalho ou o estudo por causa do jogo são apenas três deles.

“Se a bet fosse uma droga, eu diria que é o crack. Seu poder aditivo é maior que o da cocaína, por exemplo”, compara a psicóloga Juliana Bizeto. “Quanto menor o intervalo entre aposta e resultado, maior é o risco de compulsão. Para piorar, pode jogar sozinho. Causa mais dano porque não há controle social”.

Juliana Bizeto é autora do capítulo dedicado a Jogo Patológico do livro Dependências Não Químicas e Compulsões Modernas (Editora Atheneu, 2016). Ela explica que, a exemplo do tabaco e do álcool, o transtorno do jogo também envolve dependência, tolerância e abstinência.

Dependência porque o jogador compulsivo pensa em jogo 24 horas por dia: onde, como e quando jogar são pensamentos recorrentes. Tolerância porque, para sentir o mesmo efeito de antes, precisa fazer apostas cada vez maiores. E abstinência porque, quando não consegue jogar, chega a passar mal. Alguns dos sintomas relatados são físicos, como dor no peito, suor nas mãos e tremor nas pernas.

No livro, Bizeto descreve as três fases do jogo. A primeira é a da vitória. Por sorte ou habilidade, o jogador ganha quase tudo. Esbanjando autoconfiança, aumenta a frequência e o valor das apostas. A segunda é a da perda. Quanto mais perde, mais quer jogar. Aposta o que pode e o que não pode, como salário ou poupança. A terceira é a do desespero. Chega a praticar atos ilícitos, como roubo ou fraude, para continuar apostando. Quando se dá conta do buraco em que se meteu, entra em pânico.

“Jogador compulsivo é movido à adrenalina. Ganhando ou perdendo, gosta de jogar. Se perde, joga para recuperar o dinheiro. Se ganha, joga para ficar milionário. O jogo, porém, nunca perde. Quem perde é o jogador”, admite o Dostoiévski de São Paulo.

‘Quanto mais cedo se começa a jogar, maior é o risco de dependência’

Hoje, no Brasil, existem entre 1 mil e 1,5 mil plataformas de apostas (“bets”, no original). A estimativa é do Instituto Jogo Legal (IJL). Cada uma delas oferece dezenas de modalidades de aposta, como simples, múltipla e combinada, entre outras. E não é só futebol. O jogador também pode apostar em basquete, tênis, vôlei… Outro tipo de jogo é o slot – mais conhecido como “caça-níquel”.

Atualmente, o mais popular exemplar do gênero é o Jogo do Tigrinho (ou Fortune Tiger). “Vence a partida quem tiver a ‘sorte’ de combinar três símbolos”, explica Magnho José, presidente do IJL. “Os valores de aposta vão de R$ 0,50 a R$ 600 a cada rodada”.

Em São Paulo, crianças e adolescentes têm pedido socorro nas escolas por causa do Jogo do Tigrinho. Quem alerta é o psicólogo Rodrigo Nejm, especialista em Educação Digital do Instituto Alana. “Com vergonha dos pais, muitos alunos procuram os professores e relatam sintomas preocupantes, como perda de concentração ou dificuldade para dormir. Alguns chegam a dizer: ‘Estou perdendo o controle!’”.

O psiquiatra Daniel Spritzer, coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (GEAT), adverte que crianças e adolescentes são mais vulneráveis aos efeitos das apostas e têm mais dificuldade para identificar um comportamento compulsivo que os adultos. “Quanto mais cedo se começa a jogar, maior é o risco de dependência”, adverte.

‘Só por hoje evitarei a primeira aposta’

Duas pesquisas ajudam a traçar o perfil do jogador de bet. Uma é da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA). Segundo o levantamento, 14% da população já usou aplicativos. Desses, 40% consideram as apostas como “chance de ganhar dinheiro rápido em momentos de necessidade” e 22% como “investimento financeiro”.

A outra é da Datafolha. A pesquisa revela que 15% dos brasileiros dizem fazer ou já ter feito apostas online. Desses, 8% admitem que continuam apostando, enquanto 7% dizem ter apostado, mas não apostam mais. Ainda segundo a pesquisa, 55% dos entrevistados são contrários às apostas online. A pesquisa da ANBIMA ouviu 5,8 mil pessoas e a da Datafolha, 2 mil, todas com 16 anos ou mais.

Para a psicóloga Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira, supervisora do Programa Ambulatorial do Jogo (PRO-AMJO), do Hospital das Clínicas da USP, a regulamentação das bets valoriza benefícios à economia, mas ignora riscos à saúde. “A procura por tratamento aumentou expressivamente e não dispomos de serviços para atender a demanda. Os profissionais não estão preparados para identificar ou tratar o problema”, adverte.

Entre outras medidas, ela recomenda divulgar alertas sobre o perigo do transtorno, proibir a publicidade em locais próximos a escolas e inibir a veiculação de mensagens automáticas em sites, e-mails e afins. “Essas ações têm efeito limitado, mas são importantes medidas de redução de danos”, pondera.

O intervalo de tempo entre começar a jogar (fase da vitória) e perder o controle (fase do desespero) gira em torno de cinco anos, mas, em alguns casos, pode chegar a 20. Em geral, quando jogadores compulsivos procuram atendimento, já estão em estágio avançado. Ou seja, acumularam perdas: de dinheiro, emprego, amigos e familiares, etc.

O tratamento é multidisciplinar e abrange a participação de psicólogos, psiquiatras e até neurologistas. “O que existe de mais moderno é o neurofeedback e a neuromodulação (estimulação magnética transcraniana)”, observa a psicóloga Juliana Bizeto. “Essas técnicas ajudam o cérebro a controlar o impulso de jogar”.

Os especialistas recomendam, ainda, terapia familiar e grupo de apoio. Terapia de casal e família é um dos dez tratamentos fornecidos pelo PRO-AMITI. O serviço oferece desde acompanhamento psiquiátrico individual até grupo de atividade física. Já o Jogadores Anônimos (JA) é uma irmandade que surgiu nos Estados Unidos em 1957, chegou ao Brasil em 1993 e tem como lema “só por hoje evitarei a primeira aposta”.

São, ao todo, 38 endereços em 14 estados e no DF. O único requisito para ingressar no JA é o desejo de parar de jogar. “Hoje em dia, só jogo Super Trunfo sobre Cães de Raça com minha filha”, brinca o Dostoiévski do JA. “Jogar, eu posso. Não posso é apostar. Aliás, não jogo nem Mega-Sena de Natal. Não quero despertar o monstro que existe dentro de mim”.

Onde buscar ajuda

  • Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) – Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP

Site: https://www.proamiti.com.br/

Telefone: (11) 990046247

Site: https://jogadoresanonimos.com.br/

Telefone: (11) 995716942

Fonte: Externa

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