O governo Lula (PT) já tinha uma programação construída para marcar os 60 anos do golpe militar no país antes de o presidente vetar menções, eventos e ações sobre a efeméride.
Entre os planos, estava a produção de um vídeo no canal de humor Porta dos Fundos, evento com celebridades e a transformação em memorial do antigo DOI-Codi, o aparato de repressão e tortura do regime em São Paulo.
Toda a campanha relacionada à memória da ditadura (1964-1985) foi vetada pelo presidente, o que foi criticado pela sociedade civil. O motivo foi evitar confrontos com as Forças Armadas diante do avanço das investigações sobre articulação golpista envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e militares que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023.
O Ministério dos Direitos Humanos chegou a elaborar uma série de documentos de preparação para as agendas em alusão ao golpe, como plano de comunicação e material gráfico da campanha. Já havia minutas de convites a ministros, prefeitos e governadores.
O plano foi discutido desde o fim do ano passado. A ideia era promover eventos e campanhas sobre a ditadura até dezembro de 2024.
No plano de comunicação, por exemplo, havia a sugestão de levar o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos) a programas como o Altas Horas, de Serginho Groisman (TV Globo), e Sem Censura, da Cissa Guimarães (TV Brasil).
A pasta avaliava propor a produção de programa do Porta dos Fundos com o ministro, além de um quadro no “Que história é essa, Porchat?”, do GNT, do humorista Fábio Porchat. O objetivo era mobilizar o “público mais jovem”.
Os documentos do governo não deixam claro se as ideias já haviam caído antes do veto de Lula ou se o presidente conhecia o que estava planejado. Procurado, o Ministério dos Direitos Humanos não se manifestou.
A pasta planejava transformar dois dos principais locais de tortura da ditadura em memorias: a Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), e o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna). O documento, porém, não especificava qual unidade dos centros de tortura seria transformada em ponto de lembrança sobre a ditadura.
O slogan da ação do governo chegou a ser registrado em textos internos da pasta: “60 anos do golpe 1964-2024 – sem memória não há futuro”. Como a Folha mostrou, uma das ideias era propor que ministérios fizessem pedidos oficiais de desculpas às vítimas do regime.
Uma das ações de governo, sobre “política de desaparecidos”, recebeu um alerta nos planos do ministério. “PONTO DE ATENÇÃO: A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos ainda não foi reinstalada por meio de decreto presidencial”, afirmava um dos documentos obtidos pela reportagem. O presidente Lula ainda se recusa a recriar o órgão.
Em paralelo, o ministério planejava um evento no Museu Nacional da República, em Brasília, para cerca de 700 convidados. A cerimônia teria um discurso do ministro Silvio Almeida e exaltaria a luta de militantes e perseguidos pelo regime de exceção comandado pelos militares. Os documentos não mencionavam a possível presença do presidente Lula.
O ministério também avaliava convidar apresentadores para o evento dos 60 anos do golpe. Uma lista elaborada no fim de fevereiro sugeria para a função os atores Bruno Gagliasso, Fernanda Torres, Taís Araújo e Dira Paes, além do músico Chico César e o deputado federal Henrique Vieira (PSOL-RJ).
Também se planejava uma agenda musical. O documento mostra planos de convidar Gilberto Gil, Mano Brown, Daniela Mercury ou Teresa Cristina como “atrações culturais” de “projeção nacional”.
Uma nova versão do documento retira alguns nomes da lista, como Gil e Gagliasso. Este mesmo documento cita que o evento planejado para 1º de abril visava “discutir a consolidação da democracia e a construção de uma sociedade inclusiva para todos. Contará com a presença de diversas autoridades, artistas, especialistas e representantes da sociedade civil organizada, sendo aberto ao público interessado”.
Familiares de pessoas desaparecidas também seriam convidados, de acordo com os documentos. Um dos nomes avaliados era Leo Alves, músico e porta-voz da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.
O grupo reúne cerca de 150 entidades e cobrou Lula por declarações minimizando a ditadura, antes mesmo do cancelamento dos atos para marcar o aniversário do golpe. No fim de fevereiro, o presidente disse que não queria “remoer o passado” e que estava mais preocupado com os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Dias após a fala do petista, Leo Alves disse à Folha que se sentia traído. “Ele [Lula] até menciona desaparecidos [em sua fala]. Mas então por que menosprezar memória do período? Justo no marco de 60 anos do golpe ele fala um negócio desse? É um desrespeito. A reação dos familiares é essa, sentimento de traição. Inclusive, porque apoiamos sempre o PT e o presidente Lula”, disse o músico.
O orçamento federal destinado às ações e políticas públicas relacionadas à promoção da anistia e da memória sobre a ditadura caiu 96% em uma década, como mostrou a Folha. Em 2024, ano da efeméride de 60 anos do golpe, esta verba alcança cerca de R$ 1,5 milhão e parte é destinada à Comissão de Mortos e Desaparecidos, que segue no papel.
Em 2014, o recurso superava R$ 36,2 milhões, considerando valores corrigidos pela inflação.
No começo de março, a coluna Painel mostrou que Lula orientou ministérios a não realizar críticas nem atos em memória dos 60 anos do golpe de 1964.
Após o veto do presidente, o Conselho Nacional de Direitos Humanos tomou uma série de medidas relacionadas à ditadura e com recados a Lula. O Conselho é um órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos, mas tem autonomia. É formado por representantes da sociedade civil e do poder público.